Trecho da dissertação de mestrado “O discurso das mulheres na cena paulistana de 2015-2016: uma proposta feminista de análise de espetáculos” de Daniela Alvares Beskow. Orientação: Profa. Dra. Lúcia Regina Vieira Romano. Universidade Estadual Paulista (UNESP). Ano: 2017.
Sobre a ferramenta de análise de espetáculos desenvolvida durante a pesquisa: metodologia de observação e o conceito proposto “análise situada de espetáculos”:
“A ferramenta de observação
No decorrer da pesquisa a ênfase no desenvolvimento de um olhar feminista sobre as peças levou à prospecção de ferramentas de observação e de análises das obras.
A pergunta inicial da pesquisa, que depois transformou-se em várias outras foi: existe consciência de gênero nas mulheres artistas na São Paulo atual? Para respondê-la foi necessária a elaboração de novas perguntas: Qual é o tema da peça? De que forma o tema está sendo tratado pelas atrizes e direção? Como são os figurinos? Como as atrizes se movimentam? Como é a iluminação da peça? A sonoplastia reitera ou se contrapõe aos textos
e ações? Como dialogam os corpos? Como o cenário se relaciona com a temática da peça? Como a trama se desenvolve em relação a todos esses elementos? A observação da dramaturgia cênica das peças ocorreu a partir da relação entre seus vários elementos e impulsionada pelas perguntas acima. Paralelamente foram realizadas análises das dramaturgias cênicas a partir de um olhar feminista, tendo como referência os debates teóricos presentes nas ciências humanas, partindo das pesquisas sobre patriarcado,
mulher, gênero e feminismo. Os debates teóricos no âmbito das artes colaboraram para as reflexões finais da pesquisa.
A ferramenta de observação surgiu, portanto, para viabilizar um olhar mais apurado, propondo tanto uma metodologia de observação, quanto uma posição teórica. Primeiramente foi desenvolvida uma ferramenta simplificada, em seguida esta ferramenta desenvolveu-se.
O primeiro passo da primeira ferramenta foi a identificação do tema da peça e a constatação sobre a existência ou não de questões relativas a gênero e patriarcado. Tal identificação foi elaborada em um esquema que pode ser demonstrado abaixo:
Ferramenta 1 (elaborada durante o ano de 2015)
Passo 1
Observar se a peça/apresentação:
A. Tematiza questões relativas a gênero e patriarcado.
B. Não tematiza questões relativas a gênero e patriarcado.
Passo 2
Ramificar cada alternativa, aprofundando cada uma delas:
Das peças localizadas no conjunto A
A. Tematiza questões relativas a gênero e patriarcado
1- Coloca dúvidas sobre essas questões 2- Não coloca dúvidas sobre essas questões
Das que 1. Coloca dúvidas sobre essas questões:
3- Desenvolve a dúvida através de uma reflexão crítica 4- Não desenvolve a dúvida através
de uma reflexão crítica
Das que 3. Desenvolve a dúvida em uma reflexão crítica
5- Enquanto mulheres trazem novas realidades 6- Não propõe nada de novo
Das peças localizadas no conjunto B:
B. Não tematiza questões relativas a gênero e patriarcado.
7- Enquanto mulheres trazem novas realidades 8- Não propõe nada de novo
Como descrito, no grupo A, das peças que tematizam questões relativas ao debate sobre gênero e patriarcado, emergem duas possibilidades: A peça 1- Coloca dúvida sobre essas questões. Ou seja, a peça reflete criticamente sobre essas questões, explicitando através da dramaturgia cênica algum incômodo sobre os padrões patriarcais de entendimento sobre a mulher, através, por exemplo, da expressão de discordâncias: “não concordo com isso”, “algo está errado”. Sobre a possibilidade seguinte, a peça 2- Não coloca em dúvida nenhum aspecto sobre esse contexto. Ou seja, elementos da situação da mulher no patriarcado são apresentados– através do discurso cênico – a partir da ótica da normalidade, do socialmente aceito e reproduzido em cena sem questionamento.
Ainda no grupo A, das peças que colocam dúvidas sobre a realidade da mulher de alguma forma (opção A1), há mais dois possíveis desdobramentos: a peça 3- Desenvolve a dúvida através de nova reflexão crítica ou perguntas – através do discurso cênico – como, por
exemplo, “poderia ser diferente?”, “e se fosse de outra forma?”. Na opção 4- A peça não desenvolve a dúvida através de reflexão crítica, de tal forma que não há reverberação e o processo de evidenciação de outras possibilidades é interrompido.
Das peças que se enquadram na opção 3- A peça desenvolve a dúvida em uma reflexão crítica, surgem mais duas opções: a peça 5- Traz novas realidades. Ou seja, a partir do incômodo inicial e da reflexão crítica subseqüente, a peça propõe soluções, trazendo novas realidades e propostas para pensar e expressar a realidade da mulher no patriarcado ou mesmo fora dele. A opção 6 – A peça não propõe nada de novo. A peça apresenta incômodo com alguma questão, reflete criticamente sobre isso, porém, não propõe saídas ou soluções.
No grupo B, composto por peças que não tematizam questões relativas a gênero e patriarcado, são dois os desdobramentos: 7- Ainda que não haja questionamentos, as artistas propõe, de imediato, novas realidades (imagens, relações, contextos) para o campo do gênero e das mulheres. A opção 8- A peça não traz nada de novo, ou seja, não questiona, não
problematiza e não propõe nada de novo no campo das interpretações sobre a mulher e patriarcado hoje.
Para melhor entendimento do esquema proposto, segue exemplo de uma cena hipotética, intitulada “A cena da janta”: No palco há uma mesa retangular e comprida, que vai de ponta a ponta lateral do palco, onde uma família janta. Em uma das extremidades está sentado o pai, homem velho. De frente para o público, ao lado do pai, está o filho mais velho, e logo depois, o filho mais novo. Em pé, está a mãe, servindo os homens da família,
colocando comida em seus pratos. O lugar da mãe, com os pratos ainda vazios, é o aquele à frente do filho mais velho, de costas para o público.
De acordo com o esquema proposto, essa cena se encaixaria no grupo A, sendo uma peça que “tematiza questões relativas à gênero e patriarcado”, pois, encena um momento clássico da exploração domésticas das mulheres que é a mãe/esposa servir todos os homens e pessoas da família antes de ela mesma comer.
Caso houvesse questionamento dessa situação, a peça se encaixaria na opção A1. O questionamento poderia se dar através de manifestação verbal da mulher, como por exemplo, através da fala da seguinte frase: “Estou cansada e não quero mais servi-los”. Caso a cena não questionasse de forma alguma a primeira situação, seria classificada como A2. Caso a opção
A1 se desenvolvesse para outras ações que refletissem criticamente sobre a situação, a cena estaria na classificação A1/3. Um exemplo de reflexão crítica poderia ser a manifestação da mulher através de nova frase: “Porque vocês mesmos não se servem? Venho cozinhando a vida toda para a família e servindo marido e filhos à mesa. Porque os homens desta casa não
fazem sua própria comida? Penso até que vocês poderiam cozinhar pra mim e me servir todos os dias”. Caso a opção A1 (“Estou cansada e não quero mais servi-los”) não fosse desenvolvida para outras ações que refletissem criticamente sobre essa situação, a cena se encaixaria em A1/4. Caso houvesse proposição de transformação ou superação da situação
classificada como A1/3, a cena se encaixaria na opção A1/3/5. A cena poderia desenrolar-se da seguinte forma: A mulher interrompe a ação de servir os homens, senta-se na outra extremidade da mesa e fala “Não vou mais servi-los. Agora são vocês que irão me servir.
Estou aguardando meu prato”. Ou então “Cansei dessa situação. Vou embora”, deixando a sala imediatamente. Caso a afirmação inicial A1/3 não se desenvolvesse para proposição de transformação dessa realidade sobre a qual a mulher reflete, a peça se encaixaria na opção A1/3/6.
Importante notar que houve um desenrolar dos fatos, resultando ao final, na proposição de uma nova situação. Logo, a proposição resultou da abordagem de uma questão relevante ao patriarcado, explicitou a situação que gera incômodo, refletiu criticamente sobre ela e a partir desse processo, propôs uma nova situação.
Voltando às reflexões sobre a ferramenta de análise. Posteriormente à elaboração dessa ferramenta ocorreu o encontro com as reflexões propostas pelo Teatro do Oprimido e Teatro da Oprimida, enriquecendo esta pesquisa em andamento. No Teatro do Oprimido, especificamente no Teatro Fórum, são realizadas dinâmicas de interação entre cena e o
público que convidam o público a participar da cena e interferir nela, após algum incômodo ou questionamento gerado. O processo se dá através da reflexão em conjunto com pessoas do público e propõe soluções que ao fim são aplicadas, alterando a trama da cena. De acordo com BOAL (2013):
“O Teatro Fórum – talvez a forma de teatro do Oprimido mais democrática e, certamente, a mais conhecida e praticada em todo o mundo, usa ou pode usar todos os recursos de todas as formas teatrais conhecidas, a estas acrescentando uma característica essencial: os espectadores – aos quais chamamos de spect-atores – são convidados a entrar em cena e, atuando teatralmente, e não apenas usando a palavra, revelar seus pensamentos, desejos e estratégias que podem sugerir, ao grupo ao qual pertencem, um leque de alternativas possíveis por eles próprio inventadas: o teatro deve ser um ensaio para a ação na vida real e não um fim em si mesmo.” (BOAL, 2013, p. 17-18)
A partir destas informações realizou-se um paralelo entre as reflexões do Teatro do Oprimido e a estratégia de interpretação das obras teatrais realizadas nesta pesquisa. Por exemplo, o caminho trilhado pela peça classificada como A1/3/5 seria aquela que, como nas cenas do Teatro Fórum, atingem uma transformação final através da reflexão e proposição de
soluções, porém, através de caminhos diferentes. O Teatro Fórum chegaria a essa solução através de participação com o público, enquanto que as peças observadas, seguiriam um caminho próprio, resultado de ações e reações propostas pela própria trama da obra. Importante destacar que experiências de fusão entre o Teatro do Oprimido e o Feminismo já vem ocorrendo. “A partir desta relação existe hoje o Teatro da Oprimida. A partir do Teatro do Oprimido trabalha-se com o objetivo de expor, analisar e propor alternativas às opressões vividas pelos grupos chamados de “minorias sociais” – termo equivocado, uma vez que somadas mulheres, negros, indígenas, imigrantes, homossexuais, lésbicas, dentre tantos outros “diferentes”, somos maioria. Sendo assim, era previsível que em algum momento feministas, praticantes do Teatro do Oprimido, questionariam o nome do que praticavam (…) Coringas que iniciaram grupos apenas de mulheres, passaram a chamá-los de Teatro da Oprimida (…) Esse questionamento aconteceu com diversas mulheres coringas, de algumas partes do mundo que, ao entrarem em contato, descobriram que tinham objetivos em comum: falar da mulher através e dentro do Teatro do Oprimido.” (NASCIMENTO, 2014, p.34)
Dessa forma vislumbra-se uma relação rica e propositiva através das questões formuladas por esta pesquisa e as técnicas do Teatro da Oprimida e do Oprimido, apontando a importância de futuras pesquisas sobre a relação entre esses campos. Voltando à ferramenta de análise, esse primeiro recurso foi útil para uma aproximação com as peças, promovendo aprofundamento das reflexões. Porém, essa primeira formatação
da ferramenta logo foi questionada a partir de reflexões oriundas da própria pesquisa e foi então transformada no ano subseqüente, 2016.
Surgiu uma problemática. Chegou-se à conclusão que toda questão é uma questão relativa a gênero e à mulher, e logo, toda peça apresentaria questões de gênero, ou seja, todas as peças fariam parte do grupo A e não existiria grupo B. Da mesma forma, outros elementos
da realidade – referentes a economia, política, história, classes sociais, religião, raça, e assim por diante – também estão implicados na vida social e logo, nas cenas. Nesse sentido, conclui-se que o ponto central é a perspectiva de análise. A cena hipotética da janta, por exemplo, poderia ser analisada a partir da perspectiva proposta ou então de outras, como por exemplo, a perspectiva econômica, que levaria em conta outros elementos, como por exemplo a produção dos alimentos e o valor dos objetos em cena. Outras perspectivas levariam em conta outros elementos. Nesse sentido é sempre possível analisar qualquer peça através de uma perspectiva feminista e que leve em conta a forma como os aspectos de gênero, mulheres e patriarcado são abordados.
Partindo do pressuposto acima, de que toda peça contém problemáticas referentes ao debate sobre gênero, o seguinte modelo, portanto, visou primeiro identificar a temática da peça e a partir daí colocaram-se perguntas que explicitassem a existência ou não de criticidade
dentro das temáticas desta pesquisa, segundo a tríade mulher-gênero-patriarcado.
A proposta elaborada em 2016 foi a seguinte:
Ferramenta 2 (elaborada durante o ano de 2016)
Passo 1
1- Identificação da temática da peça
Passo 2
2- Perguntas exploratórias:
1- A dramaturgia cênica explicita algum dado/momento/elemento da peça que faça referência aos elementos de gênero e patriarcado?
2- Há reflexão sobre esse dado?
3- Realiza-se crítica sobre esse dado? Ou ele é reforçado?
4-Propõe novas realidades?
Passo 3
3- Reflexão sobre a perspectiva da peça
Concluiu-se, no decorrer das análises, que a perspectiva da peça (passo 3) é a própria dramaturgia cênica, ou seja, é através da dramaturgia cênica que a temática, encontrando materialidade e constituindo a encenação sobre os temas, é abordada.
A explicação do modelo dois é como segue: Primeiramente identifica-se a temática da peça e a partir daí perguntas são realizadas para aprofundar a reflexão sobre esse temática. A primeira pergunta é: A dramaturgia cênica explicita algum dado/momento/elemento da peça que faça referência aos elementos de gênero e patriarcado? Ou seja, como dito acima,
elementos de gênero, mulher e patriarcado, estão direta ou indiretamente em todas as situações da vida e também em todas as cenas. A questão é identificar se eles estão implícitos ou explícitos na cena. No caso de estar explícitos, a próxima pergunta é se a encenação realiza reflexão sobre o dado. Em caso positivo, avança-se com a pergunta: há a formulação de crítica sobre o dado? Em caso positivo, pergunta-se: a partir desse panorama, propõe novas realidades, imagens, movimentos, ideias?
Como no primeiro modelo, seria possível propor novas realidades, mesmo sem haver um processo de questionamento e crítica, ou seja, é possível que a pergunta cinco seja respondida positivamente ainda que as perguntas anteriores tenham sido respondidas negativamente.
Foi a partir dessas duas ferramentas e também a partir de outros elementos da pesquisa que as análises sobre a dramaturgia cênica foram realizadas, ou seja, a observação das peças não seguiu os modelos acima de forma rígida, porém, foram guiadas por elas.
É importante ressaltar que caso a peça não contribua em nenhum aspecto com o pensamento e a construção de uma dramaturgia que questione a tríade mulher-gênero-patriarcado, não significa que a peça não tenha aspectos positivos, se olhada através de outras perspectivas. É possível que exista reforço dos valores patriarcais, por exemplo, em uma peça cujo cenário seja um ambiente doméstico e íntimo, que pode ser interpretado como a ausência de espaços que referenciam o coletivo e o político. Ainda que nesta pesquisa esse dado é visto como um peça que reforça os símbolos historicamente associados às mulheres no patriarcado, que são os espaços privados e domésticos,ou a ausência de espaços públicos e de tomada
coletiva de decisões, ainda assim, não significa que a peça não apresente outras questões importantes, ou que tal cenário não seja fruto de uma pesquisa consistente e proponha inúmeras questões relevantes para o debate sobre cenografia, ou mesmo para a linguagem da
peça.
A etapa que sucedeu à observação das obras foi a breve análise das mesmas e a análise aprofundada dos casos, realizada através do diálogo com os dados e os debates sobre a tríade mulher-gênero-patriarcado no Brasil e em São Paulo atualmente. Dessa forma, a análise da dramaturgia cênica expandiu-se, relacionando o espaço da cena com os espaços social,
político, econômico e estes, relacionando-se com o espaço da cena. Parte das reflexões direcionou-se para o fato de que, em cena, estavam não apenas personagens – representando mulheres ou homens – mas, atrizes, mulheres, trabalhadoras das artes. Mais e mais se considerou necessário considerar o panorama do trabalho em artes cênicas no que concerne às relações de trabalho e ao contexto de produção, de onde inclusive surgiu a atenção aos dados fornecidos pelos guias culturais. Por fim, com vistas a conformar uma análise da dramaturgia cênica a partir de um olhar contextualizado, foram realizadas entrevistas com artistas de três peças das quatro peças escolhidas como estudos de caso. Estas etapas resultaram em uma
observação mais aprofundada das peças, a partir de uma “análise contextualizada”, ou, “análise situada”, conceito desenvolvido ao longo da pesquisa e proposto por esta pesquisadora.
A análise contextualizada ou análise situada é constituída da observação da
dramaturgia cênica, a partir dos seus elementos constituintes, a partir da reflexão sobre a relação entre os vários elementos envolvidos em uma montagem e da reflexão sobre a relação entre a montagem e o contexto material, histórico, social, político e econômico onde a peça e
estão inseridas e sobre a qual agem. Os elementos que compõe a montagem seriam: ação da direção, escolha do texto, preparação de elenco, ação da equipe técnica, dramaturgia (texto), produção e venda do espetáculo, além da vida e posicionamento das profissionais no contexto fora de cena. Os elementos que compõe o contexto material da peça são inúmeros e
podem ser escolhidos alguns para aprofundar a pesquisa, tais como: dados empíricos, reflexões e teorias sobre sociedade, cultura, instituições, movimentos sociais, entre outros. Por fim há que se adotar uma perspectiva de análise, onde alguns elementos são priorizados. No caso desta pesquisa apontou-se a reflexão sobre patriarcado e violência contra a mulher como
um caminho possível para enriquecer a reflexão sobre dramaturgia cênica. Dessa forma, dramaturgia cênica e contexto social são interligados, resultando em uma análise “contextualizada” da cena. O termo “situado” pode ser também utilizado, pois, a observação insere a peça, ou seja, “situa” a peça em determinado contexto para então analisá-la.
Outro campo veio a colaborar para a análise dos espetáculos a partir de um olhar feminista. Foi o modelo proveniente das artes audiovisuais, especificamente do cinema, nomeado “Teste de Bechdel”. O teste de Bechdel surgiu a partir das tirinhas de desenho da artista lésbica Alison Bechdel, chamada “Dykes to Watch For” (tradução livre: Sapatonas para Considerar ou Sapatonas para Acompanhar), que existiu entre 1983 e 2008. Em 1985 o
teste surgiu e o debate a partir das questões por ele lançados difundiram-se a partir da década de 2000, por vários países – o Brasil, inclusive – como uma forma de refletir sobre a participação das mulheres no filmes e na indústria cinematográfica. Apesar de a linguagem cênica do teatro e a linguagem cênica do cinema partirem de processos distintos, é possível
realizar algumas conexões entre elas no que concerne aos elementos narrativos e de representação. Não obstante, o teste de Bechdel diferencia-se bastante desta pesquisa, pois, ao contrário da ferramenta de análise aqui desenvolvida, que considera peças/criações cênicas onde estejam em cena apenas mulheres, o Teste de Bechdel analisa filmes que representam
tanto homens quanto mulheres. Ainda assim alguns elementos referentes ao Teste foram úteis para as reflexões aqui desenvolvidas.
O teste de Bechdel consiste de três perguntas que são realizadas para o filme assistido:
1- Há mais de uma mulher no filme? 2- Elas conversam entre si? 3- O tema da conversa é sobre algo que não seja homens? E a partir destas três perguntas o teste traça um perfil dos filmes em relação à representação da mulher. Diversos debates circundam o Teste de Bechdel.
Primeiramente é importante dizer que um dos resultados mais relevantes do Teste não é o número de filmes que respondem positivamente as três perguntas (ou seja, filmes que apresentam duas ou mais mulheres, que conversam entre si sobre algo que não seja os homens), mas, a imensa quantidade de filmes que não respondem com um “sim” a todas as perguntas. Observa-se que a maioria dos filmes não apresentam estórias onde o tema das mulheres que conversam entre si seja sobre algo que não seja homens. Essa é uma constatação importante, pois, demonstra que a grande maioria das imagens assistidas por milhões de pessoas globalmente, não apresentam mulheres e personagens cujas vidas não giram em torno dos homens, reforçando, portanto, diversos valores do patriarcado. Contudo, são necessárias mais e outras perguntas para que se avalie com profundidade a forma como as mulheres são representadas nos filmes. Nesse sentido, o Teste de Bechdel pode ser aprimorado, assim como
pode ser aprimorada a ferramenta de análise de espetáculos que essa pesquisa propõe. Para que a mulher seja vista como protagonista na vida social, é extremamente importante que filmes expressem valores, ações e ideias referentes a realidades que não girem apenas em torno dos homens – como pretende o patriarcado – e dessa forma, não desvalorizem
ou descartem sujeitos históricos. O fato de existirem muitos filmes que não apresentam mulheres socialmente protagonistas em seus enredos, demonstra que o panorama da indústria audiovisual reforça
fortemente valores patriarcais estabelecidos. Ao mesmo tempo, no caso do Teste de Bechdel, observa-se que muitos filmes que respondem com um “sim” às três perguntas, podem também reforçar valores patriarcais, através da forma como retratam as mulheres. As personagens
podem, por exemplo, estar sendo retratadas de forma erotizada sem que essa construção estética faça parte da proposta temática do filme, ou seja, apenas reforçando o senso comum sobre a representação erotizada da mulher atualmente. Ou então as personagens podem estar conversando sobre assuntos que não interferem nos elementos principais da trama. Ou seja, ainda que haja mais de uma mulher no filme e elas conversem entre si sobre algo que não seja os homens a representação dessas personagens pode ainda assim se dar enquanto elementos “decorativos” do filme.
Reflexão semelhante se deu sobre as peças. Observou-se que uma peça pode propor uma temática crítica ao patriarcado e, ao mesmo tempo, através dos elementos da dramaturgia cênica, reforçar estereótipos associados à feminilidade e às posições que as mulheres ocupam no patriarcado. Durante a pesquisa, reforçou-se a visão de que forma cria conteúdo, ou seja, a dramaturgia cênica também gera elementos que acabam por constituir um tema em si, que acabam por transformar elementos da dramaturgia textual, ainda que esse tema não fizesse parte dos assuntos explicitados na peça.
Logo, uma peça pode não apresentar uma temática feminista, ou seja, que questiona a tríade mulher-gênero-patriarcado, mas, apresentar uma perspectiva feminista, ainda que não o faça intencionalmente
Por fim, a reflexão de Gayle Austin resume o processo de entendimento da cena a que se dedicaria uma análise com abordagem ou perspectiva feminista. Em seus termos:
“Uma abordagem feminista a qualquer coisa significa prestar atenção às mulheres. Significa prestar atenção quando mulheres aparecem como personagens e perceber quando elas não aparecem. Significa tornar alguns mecanismos “invisíveis”, visíveis, e apontar, quando necessário, que, enquanto o imperador não tem roupas, a imperatriz não tem corpo. Significa prestar atenção às mulheres enquanto escritoras e enquanto leitoras ou membros da plateia. Significa “não tomar nada como certo”
porque as coisas que “tomamos como certas” são usualmente aquelas que foram construídas a partir do ponto de vista mais poderoso na cultura e esse não é o ponto de vista das mulheres.” (AUSTIN, 1990 apud GOODMAN, 2003, p.136, Tradução nossa)
É notável que, ainda que uma peça seja dirigida e atuada por mulheres, a perspectiva cênica pode ser a socialmente dominante, ou seja, aquela produzida pelos homens como sujeitos dominantes no regime patriarcal, porém, sendo reproduzida pelas mulheres. Logo, observar uma peça a partir de uma perspectiva feminista significa observar quais são as
imagens construídas sobre as mulheres e como essas imagens propõem ideias e conceitos em cena e ainda, quem as profere, encarnando discursos e os perpetuando. A análise da cena constrói-se então, a partir dessa observação, constituindo-se de um olhar feminista e generificado para o fenômeno da recepção.